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Conclave põe em disputa rumos da Igreja Católica

Em meio ao conclave mais diverso da história da Igreja Católica, com cardeais de 71 países reunidos no Vaticano para escolher o sucessor de Francisco, o Brasil ocupa um papel central — não apenas pela presença recorde de sete eleitores, mas também pela forma como seu clero e seu laicato refletem a disputa mais ampla […]

Em meio ao conclave mais diverso da história da Igreja Católica, com cardeais de 71 países reunidos no Vaticano para escolher o sucessor de Francisco, o Brasil ocupa um papel central — não apenas pela presença recorde de sete eleitores, mas também pela forma como seu clero e seu laicato refletem a disputa mais ampla que atravessa o catolicismo contemporâneo: entre uma Igreja pastoralmente reformista, moldada pela sensibilidade social de Francisco, e uma reação global conservadora que reivindica o retorno à ortodoxia doutrinária. Enquanto os cardeais brasileiros se destacam por seu perfil moderado e compromisso com causas sociais e ambientais, redes católicas de direita no país mobilizam apoio a figuras estrangeiras que prometem frear os ventos de renovação. O que está em jogo, mais do que uma eleição, é o significado político, espiritual e simbólico de ser católico no século XXI.

Pela primeira vez em dois mil anos, o Colégio de Cardeais da Igreja Católica se reúne com um nível de diversidade geográfica e cultural jamais visto. Com 133 cardeais de 71 países diferentes, os eleitores entram nesta quarta-feira (7) em conclave, a portas fechadas, na Capela Sistina, no Vaticano, para escolher o 267º pontífice da história da Igreja. O processo, marcado por rituais ancestrais, ocorre em um momento de inflexão global para o catolicismo e sob o peso de um mundo cada vez mais fragmentado — e, ao mesmo tempo, interconectado.

A pluralidade do colégio reflete uma das principais marcas do papado de Francisco, que moldou essa composição com o objetivo claro de internacionalizar e descentralizar o poder na Igreja, dando voz a regiões antes marginalizadas como Sudão do Sul, Haiti e Mianmar. Cerca de 80% dos cardeais votantes foram nomeados pelo papa argentino, o que reforça o impacto duradouro de seu pontificado, mesmo após sua saída.

Um ritual milenar diante de desafios contemporâneos

O conclave começa com uma missa na Basílica de São Pedro, seguida do isolamento dos cardeais na Capela Sistina. Ali, os participantes estarão privados de qualquer contato com o mundo exterior, como manda a tradição desde 1274, quando o papa Gregório X instituiu o rito após conclaves arrastados e caóticos. A primeira votação, ainda de sondagem, ocorre às 16h30 (11h30 de Brasília). A fumaça, preta ou branca, subirá da chaminé da Capela Sistina às 19h (14h de Brasília), indicando se houve ou não consenso.

A partir de quinta-feira, o ritmo se intensifica com quatro votações diárias — duas pela manhã e duas à tarde. Se após três dias e sete escrutínios não houver definição, o processo pode ser suspenso para um dia de oração e diálogo, como prevê a constituição apostólica Universi Dominici Gregis.

Serão necessários 89 votos para eleger o novo papa, o que equivale a dois terços do total. A escolha, no entanto, raramente se define no primeiro dia. O conclave que elegeu Bento XVI durou 26 horas; o que escolheu Francisco, 27. O mais longo do século XX, em 1903, se estendeu por cinco dias.

Diversidade e imprevisibilidade

A composição atual do Colégio de Cardeais, muito mais representativa dos continentes africano, asiático e latino-americano, contribui para tornar o resultado altamente imprevisível. “É mais difícil prever o resultado da eleição de hoje, já que o Colégio de Cardeais é nacional e culturalmente mais heterogêneo”, analisa o historiador da Igreja Jörg Ernesti, em entrevista à Deutsche Welle.

Esse fator torna o cenário atual distinto de conclaves anteriores, em que alianças regionais e visões teológicas bem definidas costumavam ditar o rumo da escolha. Hoje, a multiplicidade de sensibilidades — progressistas, conservadoras, pastorais, doutrinárias — reflete o próprio mosaico do catolicismo contemporâneo, que precisa responder simultaneamente a crises locais e dilemas universais.

Uma Igreja em encruzilhada

A escolha do novo papa acontece em um momento de intensos desafios para a Igreja. De um lado, há a necessidade de reconectar a instituição com fiéis em regiões secularizadas, como a Europa, onde o catolicismo perde influência ano após ano. Do outro, cresce a importância do sul global, onde a fé católica segue vibrante, mas enfrenta tensões com contextos políticos instáveis, miséria estrutural e expansão de outras religiões — inclusive vertentes neopentecostais.

O próximo pontífice herdará temas urgentes deixados por Francisco, como o enfrentamento dos escândalos de abuso sexual, a transparência financeira do Vaticano, o debate sobre celibato e o papel das mulheres na Igreja. Além disso, terá de lidar com o impacto das guerras, das migrações forçadas e da crise climática — temas cada vez mais presentes no magistério papal desde a encíclica Laudato Si’.

O peso da tradição e da cena global

Mesmo com toda a modernidade das comunicações e da política global, o conclave segue obedecendo a rituais praticamente inalterados há séculos. Cada cardeal deposita sua cédula escrita à mão numa urna de prata, depois de afirmar em voz alta: “Invoco como testemunha Cristo Senhor, que me há de julgar, que o meu voto é dado àquele que, segundo Deus, julgo dever ser eleito”. Os votos são contados, amarrados com uma agulha e queimados ao final de cada rodada. A fumaça que sobe da chaminé, branca ou preta, carrega o suspense de mais de um bilhão de fiéis ao redor do mundo.

A expectativa é que a tradicional declaração “Habemus Papam” seja pronunciada por Dom Dominique Mamberti, cardeal francês e atual prefeito do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, cerca de uma hora após a eleição, quando houver.

A sucessão de Francisco: continuidade ou ruptura?

Francisco, o primeiro papa jesuíta e o primeiro do hemisfério sul, abriu caminhos ousados ao aproximar a Igreja de temas sociais e ambientais, ao dar voz aos povos indígenas, e ao estimular uma sinodalidade que descentraliza o poder clerical. Sua sucessão coloca em jogo o dilema entre prosseguir esse caminho reformista ou retomar um perfil mais tradicional e doutrinário.

O resultado do conclave não será apenas a escolha de um novo papa, mas uma resposta às tensões internas de uma Igreja que luta para continuar universal sem se fragmentar, e para permanecer fiel à sua tradição sem se tornar anacrônica.

Como observa o sociólogo francês Olivier Roy, “a Igreja Católica está diante de um paradoxo: só pode continuar sendo universal se aceitar deixar de ser eurocêntrica”. (Fonte: “La Sainte Ignorance”, Seuil, 2008)

O conclave que se inicia nesta quarta-feira pode selar esse passo — ou retroceder na tentativa.

Cardeais brasileiros votam em meio a uma batalha simbólica

No centro do embate, o Brasil ocupa papel de destaque. Pela primeira vez, sete cardeais brasileiros participam da eleição papal, número que posiciona o país como a terceira maior representação no conclave, atrás apenas da Itália e dos Estados Unidos. Desses, cinco foram nomeados por Francisco e são, em sua maioria, considerados moderados com inclinação ao progressismo pastoral — especialmente em temas como justiça social, direitos humanos e preservação ambiental.

Mas do lado de fora das paredes do Vaticano, influenciadores e redes conservadoras católicas no Brasil organizam apoio explícito a cardeais estrangeiros que simbolizam resistência ao pontificado de Francisco. Memes, vídeos e declarações de apoio nas redes projetam uma tentativa clara de influenciar o debate interno da Igreja — ainda que, formalmente, alheia ao voto popular.

Entre os brasileiros com direito a voto, três nomes se destacam pelo alinhamento com o legado de Francisco:

– Dom Leonardo Steiner (Manaus), defensor da Amazônia e crítico explícito de Jair Bolsonaro;

– Dom Jaime Spengler (Porto Alegre), presidente da CNBB e comprometido com a causa dos povos originários e da justiça social;

– Dom Sérgio da Rocha (Salvador), membro do Conselho de Cardeais que auxilia diretamente o papa no governo da Igreja.

Todos eles carregam traços do chamado “progressismo pastoral”, corrente que busca atualização do papel da Igreja sem romper com a doutrina. Como observa a teóloga Maria Clara Bingemer, da PUC-Rio, esses cardeais valorizam a ação social, mas evitam radicalismos ideológicos: “Eles não são da Teologia da Libertação clássica, mas atuam junto aos pobres, às periferias e às comunidades marginalizadas”, afirma.

Já Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, é visto como conservador moderado. Mesmo nomeado por Bento XVI e crítico do uso político do Bolsa Família, mantém amizade pública com o padre Júlio Lancellotti e tem se posicionado contra tentativas de silenciamento da pastoral de rua. Em entrevista recente, Scherer pontuou que os critérios de escolha papal extrapolam rótulos: “O evangelho é tanto progressista quanto conservador. A opção pelos pobres, o cuidado com os migrantes e com a paz não são ideologias, são posturas do evangelho”, declarou.

Outro nome em destaque é o de Dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro, que já foi associado a Bolsonaro por ocasião de um vídeo gravado com o ex-presidente em 2018. Apesar disso, seu perfil pastoral nas periferias e sua ausência em polêmicas doutrinárias indicam um conservadorismo discreto e conciliador.

Direita católica e seus “papáveis” favoritos

Do lado oposto da arena simbólica, as redes conservadoras católicas brasileiras se mobilizam por nomes estrangeiros que simbolizam um retorno à ortodoxia doutrinária pré-Francisco. O mais celebrado é o cardeal Robert Sarah, da Guiné, ex-prefeito da Congregação para o Culto Divino. Nas redes sociais brasileiras, Sarah virou meme e símbolo: “Não vote em branco, para papa vote Sarah”, dizia uma peça compartilhada por influenciadores católicos, misturando apoio político e cunho racialista.

Sarah é conhecido por frases que rejeitam abertamente a abertura pastoral promovida por Francisco: “Faço parte daqueles, e somos muitos, que não permitirão que a pastoral substitua a doutrina.”

Ao lado dele, nomes como Raymond Leo Burke, arcebispo norte-americano e crítico contumaz do papa, e Gerhard Ludwig Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, reforçam o trio de favoritos entre a direita católica. Burke liderou as “dubia”, questionamentos públicos à encíclica Amoris Laetitia, e foi removido do alto escalão do Vaticano. Müller, por sua vez, vem sendo comparado por apoiadores brasileiros a Joseph Ratzinger (Bento XVI), consolidando sua imagem como bastião da ortodoxia.

Durante evento recente no Brasil promovido pelo Instituto Newman — fundado por um ex-integrante do MEC bolsonarista —, Müller foi saudado como referência espiritual. “A questão não é entre conservadores e liberais, mas entre ortodoxia e heresia”, declarou.

Uma disputa de signos e poder

As falas compartilhadas nas redes — “o futuro papa deve ser um homem de fé, não um político”; “a Igreja não é um sindicato”; “não se pode substituir doutrina por pastoral” — compõem um léxico de resistência ao legado reformador de Francisco, marcado por gestos de acolhimento, descentralização e sinodalidade.

Para a socióloga Tabata Tesser, essa movimentação revela um fenômeno mais profundo: a politização da sucessão papal por meio de símbolos que, embora eclesiais, operam como marcadores ideológicos. Segundo ela, parte da direita católica brasileira articula a sucessão como uma disputa contra o “globalismo”, o pluralismo e a cultura do diálogo, como mostram os discursos de Dom Athanasius Schneider, bispo auxiliar do Cazaquistão, apoiado por Carla Zambelli e outros influenciadores bolsonaristas — embora nem sequer seja cardeal.

O futuro da Igreja e o significado do próximo papa

O cardeal brasileiro Dom João Braz de Aviz, mesmo nomeado por Bento XVI, defende a herança pastoral de Francisco: “A predileção pelos pobres é uma escolha de Deus”. Sobreviveu a um atentado em 1983 e desde os anos 1980 atua nas periferias, além de ter criticado a corrupção e defendido a abertura ao diálogo com movimentos sociais.

Como observa o teólogo Paulo Fernando Carneiro de Andrade, da PUC-Rio, o atual conclave é fruto de uma transformação arquitetada por Francisco ao longo de 12 anos: “Ele renovou profundamente o colégio cardinalício, com uma estratégia clara de futuro e a tendência de reduzir o peso da Europa e ampliar o do Sul Global”.

Porém, como analisa a pesquisadora Brenda Carranza, da Unicamp, isso não significa garantia de continuidade: “Francisco era um moderado. No conclave, minha hipótese é que teremos uma disputa entre conservadores, conservadores moderados e ultraconservadores”.

Conclusão: tradição em tensão

A sucessão de Francisco não é apenas a eleição de um líder espiritual. É uma disputa simbólica e política sobre o que significa ser Igreja no século XXI. Em jogo estão as prioridades pastorais, a relação entre fé e política, a estrutura de poder eclesial e o papel da Igreja em um mundo polarizado, desigual e em crise.

Seja quem for o escolhido, caberá a ele reconciliar uma instituição global em profunda transformação — sem perder o vínculo com sua missão original: servir aos pobres, proclamar o Evangelho e ser, acima de tudo, humana em sua vocação universal.

O conclave que se inicia não decidirá apenas quem ocupará o trono de Pedro, mas quais valores e visões conduzirão a Igreja Católica em um mundo cada vez mais polarizado, desigual e em busca de sentido. O Brasil, com seus cardeais de perfil pastoral e sua sociedade marcada por profundas contradições religiosas e políticas, é espelho e campo de batalha dessa disputa. De um lado, uma Igreja que busca estar próxima dos pobres, dos povos originários e dos desafios do século XXI; de outro, a pressão de setores conservadores, que almejam restaurar uma autoridade centrada na doutrina e na exclusão do pluralismo. O próximo papa não será apenas sucessor de Francisco ou de Bento XVI — será, acima de tudo, herdeiro de uma tensão histórica entre tradição e transformação, entre fidelidade ao evangelho e escuta dos sinais do tempo. O que emergir da Capela Sistina, mais do que uma fumaça branca, será um indicativo do lugar que a Igreja pretende ocupar no futuro da humanidade.

Fonte: Site Semana ON

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