Comissão que avalia a reforma da legislação enfrenta críticas sobre a inclusão de 'entidades digitais' e outros pontos controversos.
O projeto do novo Código Civil, proposto pelo senador Rodrigo Pacheco, enfrentou críticas em audiência pública, especialmente sobre a atribuição de personalidade a robôs e IAs.
A comissão responsável por analisar o novo Código Civil, proposta do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), apurou nesta quinta-feira (23) severas críticas à sua redação, especialmente no que tange à atribuição de características de personalidade a robôs e sistemas digitais. A terceira audiência pública sobre o Projeto de Lei 4/2025, que visa reformar cerca de mil artigos da norma atual e incluir outros 300 dispositivos, evidenciou temores relacionados a diversos campos, como o direito de família, a liberdade de expressão e a segurança jurídica, além de um possível fomento ao ativismo judicial.
A advogada e consultora jurídica Layla Abdo Ribeiro de Andrada foi uma das vozes críticas, questionando o artigo 2027-S do Livro de Direito Digital. Esse trecho do texto define como situação jurídica digital as interações que geram responsabilidade, direitos e deveres não apenas entre pessoas naturais e jurídicas, mas também com “entidades digitais” como robôs e inteligências artificiais. Para a consultora, a literalidade do artigo pode levar à interpretação de que tais entidades possuiriam personalidade jurídica, o que ela classificou como “catastrófico”, principalmente no âmbito da responsabilidade civil. Ela defendeu a criação de um regime de responsabilidade específico para a inteligência artificial, dada a complexidade e variabilidade da cadeia de potenciais responsáveis por eventuais danos.
Em defesa da proposta, a juíza Patrícia Carrijo, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e membro da comissão de juristas, argumentou que o livro de direito digital foi discutido de forma democrática. A magistrada ressaltou a urgência de uma nova legislação, afirmando que hoje 70% das demandas judiciais de responsabilidade civil já possuem correlação direta ou indireta com o ambiente digital. Segundo Carrijo, o projeto é fundamental para oferecer segurança jurídica às decisões judiciais, questionando se os legisladores desejam ser responsáveis por um Código Civil que se tornará insuficiente em 20 anos. O senador Carlos Portinho (PL-RJ), por outro lado, alinhou-se ao entendimento de Layla Abdo, indagando como seria possível atribuir responsabilidade ou personalidade a uma “coisa” que é ferramenta de uma pessoa física ou jurídica. A juíza, em resposta, reiterou que a intenção da comissão nunca foi conferir personalidade a robôs ou IAs, mas sim que a responsabilidade recaísse sobre os “donos” dessas tecnologias.
O relator-geral da comissão de juristas do Código Civil, Flávio Tartuce, minimizou as preocupações em relação ao artigo 2027-S. Ele comparou as entidades digitais a “entes despersonalizados” já presentes no Direito Civil, como condomínios, espólios e massa falida, não vendo problemas na proposição. Tartuce manifestou sua convicção de que o livro de direito digital deve ser anexado ao texto geral, considerando-o uma oportunidade para o Brasil realizar uma reforma “geracional e histórica” do Código Civil de 2002 e servir de exemplo para outros países.
Ainda no debate sobre o futuro do direito, a professora Layla Abdo fez um alerta sobre a discussão de “neurodireitos” no Brasil, mencionando que, embora Europa e Chile abordem conceitos como privacidade mental e liberdade cognitiva, não há legislação mundial consolidada sobre o tema. Ela ponderou que o ordenamento jurídico brasileiro já possui ampla proteção para a pessoa natural, sugerindo que este não seria o momento adequado para regulamentar neurodireitos. Contudo, o professor Dierle José Coelho Nunes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), defendeu a inclusão dos neurodireitos para a proteção da identidade e autonomia da pessoa, garantindo que tecnologias influenciadoras da mente não sejam usadas de forma coercitiva.
Outras mudanças significativas propostas no projeto incluem a ampliação do conceito de ato ilícito, conforme discutido pela juíza Patrícia Carrijo e a relatora-geral Rosa Nery. A nova redação do artigo 186 visa a uma “ilicitude civil decorrente de violação a direito” e “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia, violar direito e causar dano a outrem, responde civilmente”, com uma função preventiva e pedagógica além da reparatória. O professor Vicente de Paula Ataíde Júnior, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), destacou a inclusão de artigos que reconhecem os animais como “seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria”, suprindo uma omissão do Código Civil atual. A desembargadora Débora Brandão, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), por sua vez, sugeriu reparos em artigos que definem o direito de personalidade, como nome, imagem e honra, propondo alterações para incluir parentes colaterais de até terceiro grau na legitimidade para requerer medidas após o falecimento, além de simplificar a oficialização de diretivas antecipadas de vontade.

